O padre sertanejo Djacy Brasileiro, que ficou famoso por lutar pela transposição do São Francisco com a famosa “cruz de lata”, distribuiu carta a imprensa onde fala de coisas simples que não tem a devida importância nos meios de comunicação. O padre escreveu um belo texto, onde aproveitou para criticar e satirizar a banalidade da onda de “Luiza está no Canadá” e denunciar a violência urbana que vivem, crianças, negros, pobres e todo povo nordestino.
Leia a carta do Padre Djacy:
Esta é a realidade brasileira, desumana, cruel, ingrata, injusta que fere impiedosamente os pobres, os pequenos, os sem vez e voz. Uma mulher grávida, extremamente necessitada do “pão nosso de cada dia”, “rouba” uma lata de manteiga, possivelmente para saciar sua fome. Dois seres passando fome: ela e o bebê. Consequência: passou três dias na cadeia. Essa cena dramática, traumatizante, não foi na França, mas em Fortaleza, no Nordeste brasileiro. Essa pobre mulher ganhou fama, notoriedade, mas uma fama ou notoriedade bem diferente: passou a ser mal vista, odiada, vilipendiada na sua dignidade pessoa humana. Agora era tratada como ladra.
A sua família humilde, simples, resolveu se reunir na noite de Natal para celebrar o nascimento de Jesus. A mãe, com os olhos lacrimejados, voz embargada, assim falou: graças a Deus, todos reunidos para o simples jantar ( a família havia ganhado uma cesta básica) e para a celebração do natal, menos minha filha Severina, que está na cadeia. E todos choraram amargamente.
Para essa mulher grávida e desempregada, acusada de roubar uma lata de manteiga, agora era alvo de escárnio, zombaria, desprezo. Repórteres, Fotógrafos, cinegrafistas eufóricos a sua procura para tirar fotos, filmá-la. Trabalho este a render-lhes uma boa matéria de cunho policial, consequentemente, um bom dinheiro.
Acusações, condenações, cadeia, maus-tratos e desprezos varriam, feito furacão a 300 km por hora, a vida daquela futura mamãe. Na solidão do abandono, da rejeição e da condenação, na cadeia do seu interior, certamente, ela pensou: lá em casa, todos reunidos para o jantar e a novena, menos eu, trancada neste lugar lúgubre e infernal. Pobre de mim!
Tudo isso para dizer que, enquanto uma brincadeira, literalmente comercial, toma dimensão inimaginável, levando ao palco da notoriedade, da famosidade homens e mulheres que não sabem o que é fome, sede, miséria, injustiça social, exclusão econômica e cultural, satisfazendo seu ego de grandeza, de auto-exibição, há milhares e milhares de cidadãos gritando por vida, por justiça, por dignidade. Só que esse grito pungente não é levado em consideração não só pelos os que detêm o poder político, mas também, por aqueles que têm o poder da comunicação nas mãos, ou seja, os donos dos grandes meios de comunicação social: rádio, televisão, jornais. Seu grito de dor, de socorro, torna-se um grito abafado, ignorado. E os pobres coitados, não encontrando respaldo na sua luta por vida, só lhes resta pensar: para nós, tudo é difícil, até para viver. E Nessa hora, não aparecem marqueteiros para ajudá-los. Para aqueles, aplausos, espaço nobre na mídia, admiração, honrarias, medalhas, para estes, críticas ferrenhas com expressões depreciativas: são vagabundos, malandras, não querem trabalhar, preguiçosos. Para aqueles, colunas sociais, entrevistas, oportunidades de ascensão, de lucro, para estes, polícia, cassetete, cadeia.
Querer dar atenção a uma brincadeira estrategicamente planejada, fruto de marketing comercial, é no mínimo subestimar nossa inteligência, nossa capacidade intelectual. Pois, enquanto há uma onda tempestuosa de aplausos, entrevistas, admiração girando em torno de um comercial, ”menos Maria, que está na Europa”, assuntos importantíssimos são esquecidos, desprezados. Isso dá-nos a entender que somos de um país de terceiro mundo, atrasado não só economicamente, mas acima de tudo, culturalmente.E sabe quem ganha com tudo isso? Claro, que é a elite, os poderosos, os ricos, ou seja, a alta sociedade.
Brincadeira exposta na mídia para o povão é bom demais. Quanto mais o povo brinca, melhor, pois vai esquecendo-se de cobrar, de lutar em defesa dos seus direitos inalienáveis. Então, fazer o povão brincar é estratégia lógica e pensada para amansá-lo e aliená-lo. É o famoso “pão e circo” na crista da onda. E essa praga ideológica ainda não morreu, continua mais viva do que nunca. E agora tomando dimensões variadas, modernizadas, com poder estrondoso de atração e repercussão na vida das pessoas despossuídas de senso crítico: “menos na vida de minha filhinha, que está nos E.Unidos”.
Durante toda a semana, pude ouvir muita gente pobre, humilde, falar assim:
-Seu padre, todos unidos para o almoço, menos Pedro, que está na roça
-Padre, meus filhos moram comigo, menos Chico, que está na cadeia por roubar uma galinha
-Padre, aqui está minha família, só falta a esposa, que está no céu. Ela morreu na fila do hospital
-Meus filhos não estão aqui, estão no corte de cana, na pior humilhação, dizia um determinado pai
-Padre, fico tão triste quando sinto a falta de minha filha.E pergunto-lhe ,onde ela está? Ele responde: no cemitério. Morreu porque não tinha dinheiro para fazer uma cirurgia do coração.
-Pergunto a uma mãe: todos estes são seus filhos? Ela responde-me: sim, mas falta uma. Ela está lá na roça, ajudando ao pai.
-Eita vida doida, seu padre, essa nossa. Meu filho foi morar longe, muito longe. Pergunto-lhe: ele foi estudar? Nada. Está em no Pará, trabalhando na carvoaria.
-Olha, seu padre, eu estudei a vida toda, e até agora não arrumei um emprego. Agora, Pedro, que está na Europa, e nada fez até agora, ficou famoso de uma hora pra outra, e já tem emprego a sua espera, por causa de uma brincadeira criada por marketing comercial. Já pensou um negócio desse?
-Que bonito, minha família reunida para a oração!. Só falta Toinha, que está na França, trabalhando de empregada doméstica.
-Nossa vida é sofrer, sofrer, sabe o porquê? Porque todos nossos filhos estão em São Paulo,dando um duro para viver.
-Seu padre, vamos almoçar na minha casa, amanhã? Só eu, meu marido e um filho vão estar lá. E pergunto-lhe onde estão os outros, e ela responde-me: um está em São Paulo, trabalhando no pesado, outro está no Rio de Janeiro, trabalhando como gari, e o outro,na Bahia,trabalhando no cacau.
-Padre, o que foi que essa tal meninha fez para ganhar tanta notoriedade, fama, prestígio e muito mais? Ela abraçou alguma causa humanitária, foi?
-Por que a mídia não valoriza as pessoas, as instituições que abraçam tantas causas humanitárias? É por que não dá dinheiro?
-Na minha casa, no natal, meu pai e meus irmãos diziam: todos reunidos, menos Djalma, que está no sertão seco e torrado.
-Olha padre,quando a gente luta por terra,por água, casa, segurança, educação de qualidade, não há nenhuma repercussão. Pelo o contrário, há é muita depreciação, chacota, críticas mesquinhas.
-Tudo o que a elite faz tem repercussão bonita, tudo o que pobre faz tem polícia no meio.
Sinceramente, nós temos tantas coisas para nos preocupar, e perdendo tempo dando ouvindo ou levando em consideração, brincadeiras fúteis, inúteis, sem nenhuma significância para nosso País, nosso Estado. Essas brincadeiras, visando promoção pessoal, familiar e empresarial, só podem ser coisas de mentes desprovidas de sensibilidade humana e cristã, no tocante aos graves problemas sócio-econômico que ferem impiedosamente tantos filhos de Deus, menos o filhinho do papai, que está na Itália.
Alguns questionamentos pertinentes:
Por que não dizemos: milhares de brasileiros estão na Europa vivendo de forma humilhante, lutando pela vida?
Por que não dizemos: milhares de sertanejos estão no sudeste e sul do Brasil,bem distantes de suas famílias, dando um duro para sobreviver?
Essa estratégica brincadeira capitalista que está nas redes sociais, rádios, jornais, agrada a quem? Que benefício traz para os que estão com sede, com fome, na miséria? Ou melhor, qual seu benefício social, econômico e cultural para um povo sedento de justiça social?
Uma coisa é certa, fama ou notoriedade em cima de superficialidade é igual a meteoros, passam rápidos e não deixam rastros. Enquanto isso, Pedro, Maria, João e tantas outras Severinas, que estão na Europa sofrida da vida, permanecem na caminhada da existência, com suas dores e tormentos, esperando socorro, que nunca vem.zz
Clilson Júnior
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